quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Formação de Agosto com Diac. Ângelo José. Tema: O Amor de Deus








Luz, câmera, ação


Conta-se que nas tradicionais caçadas que os aristocratas faziam, eles levavam uma grande matilha. Quando um destes cães encontrava a caça (vamos imaginar que fosse uma lebre) e punha-se a latir, todos os demais cães seguiam o cão que havia encontrado a caça e, junto dele, punham-se em disparada corrida. Ao longo da perseguição da lebre, muitos cães iam desistindo – ficando para trás – porém, o cão que havia visto a lebre não desistiu até encontrá-la. Isso se explica porque ele foi o único a ver a lebre. Todos os demais seguiam apenas o latido.

O que iremos refletir juntos é a experiência pessoal de alguém que, mergulhado na sua escuridão (ignorância) é iluminado por Cristo (LUZ), é provocado por Cristo (pro vocare – primeiro chamado) a ver a própria vida e as pegadas da presença de Deus nela (CÂMERA) e, finalmente seduzido por Cristo, anuncia a Boa Notícia (AÇÃO).

Texto de fundamento: Jo 4,1-42 (Jesus e a samaritana de Sicar)

Se compararmos os evangelhos sinóticos como uma “fotografia” de Jesus, podemos então pensar no evangelho de João (Jo) como uma “radiografia” dele. Isso porque a comunidade de onde brota o evangelho de Jo parte de um outro âmbito teológico e já vive em uma outra realidade histórica.
O relato do diálogo de Jesus com a samaritana faz parte de uma coleção de diálogos do evangelho de Jo. Basicamente podemos elencar esta coleção como o diálogo com Nicodemos (2,23- 3,21); com a samaritana (4,7-42); com o povo de Cafarnaum (6,24-59) e com as irmãs de Lázaro (11,17-44).

O diálogo de Jesus com a samaritana segue um esquema pedagógico que parte da aparente necessidade de Jesus, evolui para a colocação dos atritos, das dúvidas básicas, dos esclarecimentos, da evolução de tomada de consciência da samarita, então há a revelação de Jesus e o despertar da samaritana que vai anunciar Jesus.
Há ainda, no relato do diálogo com a Samaritana, algum diálogo e esclarecimento aos discípulos e, embora a fala de Jesus a eles seja importante, parece que neste diálogo a samaritana é a coadjuvante principal.
Como um cineastra, Jesus conduz o diálogo com maestria: prepara o ambiente, provoca reação nos personagens e conduz o roteiro ao clímax. Ao mesmo tempo, o evangelista cria um clima de suspense nos leitores ao tirar a samaritana de cena no momento dramático do texto. Assim, fica suspenso no ar qual foi a reação imediata da samaritana.

Introdução: v.1-6 = o evangelista contextualiza o episódio e demonstra que não é mero acaso. Jesus poderia ter ido da Judéia à Galiléia sem passar pela Samaria (Ele poderia passar pelo vale do rio Jordão), mas como afirma, era preciso passar por ali. A evangelização dos samaritanos é necessária e proposital.
João situa a hora do diálogo (hora sexta, ou seja, meio-dia) no momento da plena luz. Não só a localização geográfica, mas também o tempo era propício para Jesus fazer o que precisava fazer.

Diálogo de despertar: Jesus usa do diálogo pedagógico que parte da própria necessidade e de propositais mal-entendidos. Deus faz-se mendigo e este paradoxo é para nós um forte apelo. Jesus estava cansado da viagem: pode-se dizer que Deus em sua onipotência não é frágil, não se cansa, mas Ele escolheu a fragilidade humana para revelar seu amor e em Cristo, Deus procura os corações que respondam na reciprocidade este amor. É o amor que Ele busca. Como afirma Pe. Dehon, “Deus não sabe o que fazer com nossas obras se não tiver nossos corações”.

Para surpresa da mulher ele pede: “Dá-me de beber”.
Antes, porém, é preciso contextualizar a audácia de Jesus: ele fala com uma mulher, e que não pertence ao seu clã, e, pior ainda, é samaritana. Por contendas históricas, os judeus e os samaritanos não se davam bem. Uma ofensa terrível a um judeu era chamá-lo de samaritano.
É por isso que a samaritana se espanta. Podemos ver que a samaritana já era passível ao rótulo preconceituoso que lhe haviam imposto. É como se dissesse “não basta ser mulher, ainda sou samaritana”.

Nota-se que a iniciativa parte de Jesus. A sofrida história da mulher fez com que ela se fechasse e não deixasse nenhuma brecha aberta para ser ajudada, menos ainda para ajudar. Tocar verdadeiramente o interior desta mulher exigiu paciência e persistência da parte de Jesus. Porém, antes, ele a provoca interpondo no diálogo um dado novo e curioso: ele que pedia água afirmava sobre uma água melhor. “Se conhecesses o dom de Deus, e quem é aquele que te diz ‘dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias e ele te daria água viva”.

O encontro pessoal da mulher é iniciativa de Jesus, Ele pede água, Ele provoca, sugere e, por fim, oferece água viva à mulher. Ele não se impõe, mas entra de mansinho na vida dela.
Muitas coisas na nossa vida depende do verdadeiro encontro pessoal com Cristo. Às vezes supomos pelo nosso estado de alegria que o encontro já aconteceu. Ou, pelo nosso estado de tristeza supomos que o encontro não aconteceu e talvez nunca aconteça. Porém, a “experiência” de Cristo é feita com tudo aquilo que trazemos em nossa história: tristezas, traumas, apegos, dons, virtudes, conhecimentos, família, namoro, trabalho, estudo, etc.
Jesus não pede que a samaritana jogue fora tudo o que ela tem, mas somente aquilo que não faz com que reconheça a sua verdade interior.
No seu modo de crer e de cultuar a Deus, muitas coisas a samaritana acreditava (“sei que um messias deve vir – aquele que chamam Cristo. Quando ele vier, anunciar-nos-á todas as coisas”), e em outras ela tinha dúvidas (“nossos pais adoraram sobre esta montanha, e vós afirmais que é em Jerusalém que se encontra o lugar onde se deve adorar”). Porém, a contradição maior, no seu interior, era a respeito da relação entre o que ela acreditava e o que ela fazia.
Muitas vezes esta mulher veio até o poço de Jacó, e todas as vezes ela trazia algo dentro de si que era insaciável. Quando Jesus revela a mulher que ele portava uma água viva e que poderia saciar verdadeiramente sua sede, então ela não resiste e, mesmo sendo ele judeu, ela pede da sua água.
É certo que a água que Jesus ofereceu à mulher e oferece a nós é Ele próprio e a salvação realizada em nós.
“Dá-me essa água, para que eu não tenha mais sede e não precise mais vir aqui tirar água”. Percebe-se que ela já não agüentava mais buscar esta água que não matava a sede, não dava respostas e não causava conforto à sua alma. Assemelha-se ao círculo vicioso das pessoas que, embora se reconheçam doentes e enfraquecidas pelos diversos vícios, não conseguem saltar fora do círculo. Sentem-se como se incontrolavelmente devorassem a si mesmas.

Jesus acerta o alvo do seu coração quando fala da sua história.

“Vai, chama o teu marido e volta aqui. A mulher lhe respondeu: eu não tenho marido. Jesus lhe respondeu: tu dizes bem – não tenho marido; tiveste cinco,e o que tens agora não é teu marido. Nisso disseste a verdade”.

Podemos até fazer muitas coisas pelas pessoas, mas nós só tocaremos seus corações quando tocamos verdadeiramente em suas histórias. Quando vivemos a empatia da história do outro, isto é, reconhecer a própria história, reconhecer a do outro e, a partir das próprias experiências, reconhecer-se na história do outro.
Alguns exegetas dizem que os “5 maridos” da samaritana são os cinco deuses referidos em 2Rs 17,29-41; outros dizem que isso se refere aos cinco conquistadores que dominaram a Samaria. Isso não é o mais importante, mas o fato é que este reconhecimento da “oculta história” dessa mulher lhe deixou transtornada. A partir desse momento, evolutivamente, ela reconhece Jesus como “profeta”, e, ao fim, reconhecerá como o “Cristo”.

No encontro pessoal com Cristo, o que acontece é uma promoção ao verdadeiro culto: adorar em espírito e verdade. Isso não significa que externamente não se possa explicitar o culto, mas se assim se apresenta o encontro com Jesus, este culto deve partir do interior e do amadurecimento na própria vida: a revelação de Cristo na realização humana.

Por melhor que seja nossa intenção em adorar, sem a eficaz Graça de Deus derramada pelo seu Espírito Santo, não podemos ser verdadeiros adoradores. É Ele, o Espírito Santo, que nos conduz ao verdadeiro culto. É Ele que nos estimula, nos surpreende pela nossa “fé inteligente” e, promove o verdadeiro encontro com Cristo.
O dom do Espírito Santo não é privilégio de alguns. Desde o batismo, Ele está presente em nossos corações e já nos conduz. Nosso esforço por conhecer Jesus e viver como Ele viveu é motivado pelo Espírito Santo. Mas a adesão a Ele é sempre livre.

Porém, o clímax do diálogo é o ponto onde a mulher, agora livre dos bloqueios de sua história, pronta e disposta a seguir a verdade, diz:
“Eu sei que um Messias deve vir – aquele que chamam Cristo. Quando ele vier, anunciar-nos-á todas as coisas”.
Comparando a um processo de sedução, Jesus percebe que a hora de se declarar à mulher é esse ponto auge, então ele revela-se:
“Egw eimi o lalwn soi” – (Eu sou, o que fala a ti) - Sou eu, eu que estou falando a ti. Esta resposta de Jesus assemelha-se à revelação de Javé a Moisés quando diz quem é: “Eu sou aquele que sou” IAHWEH.
Se Jesus tivesse se revelado à mulher, já no princípio do diálogo, certamente ela teria desprezado sua palavra. Mas depois de seduzida pelo amor de Cristo que sutilmente entrou em seu coração, a mulher já não podia negá-lo. Quando se diz que Jesus não arromba violentamente nosso coração é bem verdade, pois ele respeita nossa liberdade e nosso limite humano. Ao mesmo tempo, ele nos ensina que fomos feitos para coisas mais altas do que supomos.
Este dramático momento é intercalado pela repentina chegada dos discípulos. É como se o escritor chamasse o intervalo comercial nessa altura da trama. Contudo, quando a mulher sai, o versículo 28 registra um pequeno detalhe que certamente passa despercebido pelo leitor mais afoito: “a mulher, então largando o cântaro foi à cidade e disse ao povo...”.
É sabido que o evangelista João não escreve por mero acaso, então, por que ele registrou que o cântaro (jarro) foi deixado para trás pela mulher?
Esse é um detalhe que ajuda a refletir sobre o que Jesus causou na vida daquela mulher. Podem-se aventar algumas possibilidades:

- Porque a mulher não precisava mais. A água viva fora oferecida a ela e já não era necessário viver do pobre alimento do passado. Há pessoas que se alimentam basicamente da nostalgia dos momentos felizes do passado, ou vivem a reclamar da felicidade que não viveu no passado.
- Porque a mulher não se esqueceu da sede de Jesus. Considerando que no início do diálogo, Jesus havia lhe falado da sede que sentia, a vida nova despertada na mulher também lhe despertou sensibilidade para com a necessidade de Jesus.
- Porque ela queria um motivo para voltar. Considerando que o autor pensou na concreta necessidade da mulher (a água viva não despreza a necessidade da água mineral), então a mulher teria um bom motivo para voltar à companhia de Jesus.
A proposta desta reflexão é, inicialmente, conduzir ao reconhecimento do necessário encontro pessoal com Cristo. Cada possibilidade acima não exclui as outras, mas para você, conforme sua realidade pessoal e sua história, qual se ajustaria melhor a sua vida, como motivo para deixar o cântaro?
- libertação do passado
- consciência da sede de Jesus
- motivo para voltar

- uma quarta motivação para deixar o cântaro pode ser uma motivação negativa: deixar o cântaro para o caso de precisar dele (desconfiança na água viva – falta de entrega total – é como deixar o carro ligado e pronto para partir)

(música para reflexão)


Para concluir, o texto não termina no suspense, mas encerra-se num final feliz que começa no ardente desejo da mulher de ir falar sobre o que lhe sucedera. Esse não é um caso isolado de “louco contágio da fé”. Maria também se dirigiu às pressas para falar com Isabel sobre o que lhe ocorrera. Maria de Magdala e outras mulheres foram aos apóstolos anunciar que o túmulo de Jesus estava vazio e que anjos lhe havia falado sobre a ressurreição. Os discípulos de Emaús voltaram correndo até Jerusalém para comunicar aos onze apóstolos o que lhes sucedera. A dinâmica do evangelho é sempre a fé que “remove as montanhas” para anunciar.
E a história dos cães e a lebre...
A mulher foi, inicialmente, o pavio que acendeu a fé dos sicarenses. Porém, os que verdadeiramente foram ter com Jesus creram pela experiência pessoal. A fé não é um dom que nos fecha em nós mesmos. Ela é o ponto de partida da Graça interior que, quando verdadeira, derrama-se sobre a vida dos outros.
Só quem viu a lebre continuará na caçada implacável.

Diác. Ângelo José Adão, scj.